quinta-feira, 21 de abril de 2022

Joseph Conrad - O coração das trevas e Nostromo

         Ler Joseph Conrad (1857-1924) (Józef Teodor Konrad Korzeniowski), este autor nascido na cidade de Berdychiv do atual país Ucrânia e de pais poloneses, que foi viver na Inglaterra quando jovem, sendo marujo por quase 20 anos, viajando o mundo, nos ajuda a pensar, através de sua literatura, também, sobre o período histórico do final do século XIX e início do século XX da qual o autor estava inserido, além de sua grande sensibilidade sobre a natureza humana e suas reflexões sobre a chamada civilização que se desenvolvia. 

Capa da editora L&PM Pocket, 2018

        Para o caso de "O coração das trevas" (Heart of Darkness), publicado em 1902 (já escrito em 1899), retrata o momento histórico do chamado neocolonialismo europeu, para esse caso, sobre o continente africano. A partir da história contada pelo personagem navegador inglês, chamado Charlie Marlow, que, sem pretensões de ser uma crítica social devido às características do próprio personagem, um homem simples e que estava disposto a enfrentar uma grande aventura que o levou ao "coração da África", mas que, sua observação, sua história sobre essa aventura, se torna relevante sobre como o neocolonialismo na região do rio Congo era cruel, desumano, assim como todo processo de exploração, vendo o "coração das trevas". E, ao mesmo tempo, a percepção de como ingleses ou belgas na região, entre outros europeus (inclusive o próprio personagem Marlow), neste período histórico, viam as culturas africanas e como tratavam mal as pessoas que lá viviam. 
        O leitor de "O coração das trevas" vai percebendo, pela história que Marlow vai relatando, todo um ambiente de trevas, tanto no sentido da natureza selvagem, exuberante e impenetrável (o que nos lembra a própria floresta amazônica), mas também a situação de opressão e exploração dos povos da região, isto tudo pela busca insaciável do "precioso marfim" pelas companhias europeias, entre outras riquezas, da qual o personagem Sr. Kurtz é o representante. 
        Um dos perigos ao ler esse livro é considerar como única a imagem dos povos desta região da África como a descrita por Joseph Conrad, o que se justifica as críticas realizadas por estudos pós-coloniais, iniciadas por Chinua Achebe, a partir de1975. A África é um continente de muitas culturas, de diferentes histórias, enfim, que merecem ser pensadas. Conrad nos traz apenas um pequeníssimo aspecto dessa ampla região.


Capa da editora Record, 1983

        E o romance "Nostromo", publicado em 1904, sobre um fictício país latino-americano denominado de Costaguana, na qual Joseph Conrad descreve sua geografia, sua história política recente, e seus personagens, sendo o principal, Nostromo. Tal romance, entretanto, pode ser visto como preconceituoso aos povos da América do Sul, pela forma como é descrita as instabilidades políticas e a cultura local, como uma região atrasada, imersa na corrupção, e relatados a partir de personagens europeus. Novamente, assim como em "O coração das trevas", são europeus apresentando, a partir de sua visão de mundo, o que se passa em Costaguana.
        Historicamente, Costaguana pode, sim, lembrar as repúblicas latino-americanas em suas reais instabilidades políticas, como o Paraguai, mesmo sem acesso ao mar descrito no romance, ou o Uruguai, mesmo sem uma grande cadeia de montanha, ou outra região rica em prata, como Bolívia ou Peru, ou mesmo o Brasil e suas riquezas minerais. As lutas entre grupos políticos em Costaguana são as lutas políticas históricas destas repúblicas. As constantes ditaduras, geradas por deposição de governos, também ditatoriais, são uma constante.
        Enfim, são os países latino-americanos se estruturando no início do século XX, com suas constantes brigas internas, e ainda, tendo que enfrentar ou conviver, igualmente, já por séculos, com os interesses e a exploração dos europeus e norte-americanos sobre as riquezas desse continente. Por exemplo, a exploração da mina de San Tomé em Costaguana em que toda a prata vai para capitalistas nos Estados Unidos. A mina de prata em Costaguana é o centro do romance, com seu dono (a Concessão Gould), capatazes, padre e os infindáveis e miseráveis trabalhadores, "Josés, Manuéis e Ignacios" (p.100), e envolto em corrupção política local para se conseguir explorar esse minério, que por sua vez, enriquece grandes capitalistas fora de Costaguana.
        Da mesma forma, é interessante observar aspectos como a construção de uma ferrovia em Costaguana, que certamente nos faz pensar, neste período histórico, nas ferrovias construídas por empresas estrangeiras em todo o continente, como a Brazil Railway Company, e a ferrovia Rio Grande do Sul - São Paulo que gerou a guerra do Contestado, em 1912. E as explorações infindáveis das riquezas minerais, como a prata.
        Mas, ao mesmo tempo, o romance pode ser interpretado como uma adaptação do livro "O Príncipe" de Maquiavel, e que, portanto, equivale à política como um todo, não apenas para os países da América Latina, mas para a ação política em geral, com políticos em constantes lutas para conquistar e manter o poder, surgindo ditadores que se dizem democráticos, líderes da "pior espécie" que querem "salvar seu país", enfim, de uma natureza humana egoísta, voltada aos interesses pessoais e às honrarias que o poder traz consigo. Afinal, o que me levou a ler este romance foi a série de TV - Colônia, em que o livro "Nostromo" é citado, provavelmente querendo sugerir que a política que acontece num ambiente distópico nos Estados Unidos, retratado pela série de TV, seria a mesma descrita em Costaguana por Conrad ou em qualquer outro lugar do mundo.

        Algumas momentos do romance: 
        "A Concessão Gould era símbolo de justiça abstrata. Que os céus desabassem. (...) A Concessão Gould era um fator importante nas finanças do país, e, além disso, para os orçamentos privados de muitas autoridades. Era tradicional. Era sabido. Era comentado. Era crível. Todo ministro do Interior recebia um salário da mina de San Tomé" (p. 301).
        Como as palavras tem significados diversos em Costaguana: "Liberdade, democracia, patriotismo, governo... todas elas têm um gosto de loucura e homicídio" (p.305).

Referências
CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Joseph Conrad Korzeniowski. Porto Alegre: L&PM, 2018.
CONRAD, Joseph. Nostromo. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Introdução e notas de Martin Seymour-Smith. Rio de Janeiro: Editora Record, 1983. Primeira edição, 1904.



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