O presente texto deu origem a dois trabalhos, que foram apresentados no: 20º Congresso Brasileiros de Sociologia, como título: "A metodologia de pesquisa genealogia social utilizada na Sociologia e presente na Literatura" (2021), e no XII Seminário de Pesquisa - Teoria Literária, da Uniandrade, com o título: "A genealogia na Literatura e sua relação com a Sociologia" (2020).
Gostaria de compartilhar algumas impressões sobre o romance de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro, publicado em 1984, período histórico de véspera do fim da ditadura militar no Brasil.
Destaco a interessante mistura de fatos históricos com o desenrolar da vida dos personagens criados por João Ubaldo Ribeiro. Por exemplo, a presença holandesa na Bahia no século XVII, o regime senhorial, as fazendas e a pérfida escravidão, os indígenas, os reis portugueses, a Igreja católica e os padres, as reduções jesuíticas e sua expulsão em 1759, o Marquês de Pombal, a Independência do Brasil, 1822, a visita do Imperador D. Pedro I e a Imperatriz Leopoldina na Bahia em março de 1826, sendo que em dezembro Leopoldina vem a falecer (viagem fatídica para Leopoldina, em especial pela presença da Titília no mesmo barco e, logo em outubro, ela recebe o título de Marquesa de Santos); o período regencial e suas revoltas, como a revolta dos malês, em Salvador, Bahia, 1835 (revolta que merece muita atenção no romance), a Sabinada (1837-1838, também na Bahia), a guerra dos Farrapos, 1835 a 1845, a maioridade de D. Pedro II, a guerra do Paraguai, 1864 a 1870, a guerra de Canudos, 1896 a 1897; (enfim, as revoltas citadas têm um aspecto central no desenvolvimento do romance), sobre o exército brasileiro, a proclamação da República, 1889, a era Vargas e a ditadura civil-militar; entre tantos outros fatos que o leitor pode encontrar, em especial a partir do local em que é ambientado a trama, na ilha de Itaparica, Bahia (ilha que também foi palco de uma das batalhas da independência, em janeiro de 1823).
Como visto, o romance perpassa um longo período da história brasileira, entre os séculos XVII ao XX e a consequente formação do povo brasileiro. E, o paradoxo, do o povo brasileiro a sobreviver e a viver, por vezes, independente desses "grandes acontecimentos", como se não fizesse parte desta história oficial ou dela se enquadrasse, em especial quando derrotados.
Mas, o que gostaria de destacar é a questão genealógica presente no romance. A genealogia é fundamental para se compreender a longa história dos personagens e, portanto, do próprio Brasil.
Destaca-se a genealogia da ampla família brasileira do "Caboco Capiroba", filho de mãe índia e pai preto fugido que a aldeia acolheu; Capiroba é comedor de carne branca, em especial, holandês, de muitas mulheres e muitas filhas, capturado e morto na ilha de Itaparica, Bahia, em 1647, por fugir da redução e por insubordinação. Sua filha mais velha, Vu, que cuidava de um prisioneiro do pai, o holandês Heike Zernike, denominado Sinique, fica grávida do mesmo. Em 1721 nasce Dadinha, que viverá 100 anos, gangana, sua mãe foi vendida antes de desmamar, seu pai era negro, escravo, baleneiro, tinha os olhos claros, morreu no seu nascimento, provável filho de Sinique e Vu. Dadinha, bisneta do Caboco Capiroba, tem um filho temporão, Turíbio Cafubá, que tem muitos filhos e com muitas mulheres. Este filho temporão, provavelmente, teria como pai o negro Darissa da Bissínia, chegado entre 1770 ou 80, também insubordinado. Turíbio e Roxinha vão ter a filha Vevé, ou Daê ou Naê, chamada de Venância, menina linda, com a marca de estrela na testa, marca da família a gerações, estuprada pelo barão de Pirapuama, Perilo Ambrósio Góes Farinha, dono de fazendas e escravos em Itaparica, seu dono. Nasce Maria da Fé ou Dafé que, posteriormente, vê a mãe morrer por ter de defendê-la de estupro. Maria da Fé foi criada pelo negro Leléu (Leovigildo), que possui negócio próprio, dá educação a Maria em Salvador. Maria revolta-se com a vida, com o sistema, e se torna líder de um bando no século XIX, perseguida pelo governo, mito entre o povo, insubordinada, e tem um caso com o coronel do Exército, Patrício Macário, da qual nasce o filho Lourenço que continua as lutas sociais da mãe.
Enfim, a genealogia do povo brasileiro, sofrido, sem sobrenome, a superar as mazelas que lhes são impostas por uma elite econômica e intelectual extremamente preconceituosa. Mas, de uma força incrível.
Daí, paralelamente, a genealogia de Amleto Ferreira, o filho da negra professora Jesuína Ferreira (preceptora de Dafé) e do inglês John ou Henrique; Amleto era guarda-livros do barão de Pirapuama, enriquece com o seu trabalho e suas trapaças nos negócios; Amleto, mestiço, poderia ter sido o elemento novo na história brasileira (inclusive ele vê a força de sua gente), mas infelizmente prefere repetir os preconceitos e as atitudes racistas da elite escravocrata, prefere ser "branco", e compra um sobrenome, digno de sua origem: Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton, quer embranquecer; é o novo sobrenome da família; e ele tem no casamento e no compadrio com os ricos, os elementos chaves para sua ascensão social e de seus filhos; e sua família rica chega ao século XX, muda-se para o Rio de Janeiro e para São Paulo, mas com os mesmos preconceitos do século anterior, e registrando sua genealogia orgulhosamente em livro (mas, adaptando a genealogia a seus interesses).
Exceção ao centenário filho de Amleto, Patrício Macário, coronel do Exército, falecido em Itaparica em 1939, guardião da Canastra, dos segredos da Irmandade, do Espírito do Homem, amante de Dafé e da comida baiana, aberto ao conhecimento que vem do povo brasileiro.
Exceção ao centenário filho de Amleto, Patrício Macário, coronel do Exército, falecido em Itaparica em 1939, guardião da Canastra, dos segredos da Irmandade, do Espírito do Homem, amante de Dafé e da comida baiana, aberto ao conhecimento que vem do povo brasileiro.
Enfim, tantas outras histórias maravilhosas ao longo do livro e que proporcionam reflexões para que possamos nos entender enquanto brasileiros e sermos menos preconceituosos. E a olhar para a nossa história a partir de seus personagens. De encontrar nossa genealogia. E cuidar ou admirar a mariposa curuquerê que de repente pousa em cada um de nós.
Por Alessandro Cavassin AlvesReferência
RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. 5ªed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. Edição de bolso, 790 p.
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